Algumas correções à “mitologia sobre o papa Francisco”
TOM HOOPES -
Aleteia- Sabemos tanta coisa sobre o papa Francisco… e tão poucas delas são verdadeiras!
2014 foi um ano em que os meios de comunicação capricharam nos mal-entendidos sobre o papa. Vamos rever alguns deles.
Janeiro: Um papa Rolling Stone?
A reportagem de capa sobre o papa Francisco na edição de janeiro da
revista “Rolling Stone” foi um espetáculo de mau jornalismo. O
comentarista Damon Linker, da revista “The Week”, listou nada menos que
nove afirmações ridículas que tinham aparecido na reportagem da “Rolling
Stone” como se fossem coisas sérias.
Fevereiro: A comunhão e o cardeal Kasper
No consistório de cardeais realizado em fevereiro, o cardeal Walter
Kasper propôs alguns argumentos sobre a possibilidade de que os
católicos divorciados e recasados (sem a anulação do matrimônio
anterior) pudessem comungar. O mito de que Francisco fosse defensor
dessa ideia foi crescendo ao longo do ano, culminando no sínodo de
outubro, sobre a família.
Era um mito desnecessário, que o próprio papa desmanchou mais de uma
vez. Em agosto, por exemplo, ele declarou: “Quanto à comunhão para as
pessoas que estão no segundo casamento, não existe nenhum problema. Se
eles estão num segundo casamento, eles não podem comungar”.
Muito importante foi também o documento de preparação da Igreja para o
sínodo, que reiterou a doutrina sobre os divorciados que se casaram
novamente sem terem obtido a anulação matrimonial: o texto deixa claro
que a Igreja não pretende mudar a regra, e sim encontrar maneiras mais
acolhedoras de reforçar o cumprimento da regra.
Março: o encontro com Obama
O papa Francisco e o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, se
encontraram pela primeira vez e os católicos norte-americanos ficaram
desapontados ao ouvirem dizer que o papa não falaria sobre a liberdade
religiosa nem sobre o direito a vida, e sim sobre temas em que as duas
partes estavam de acordo. As questões polêmicas, portanto, “não seriam
tratadas na conversa”. Ao menos foi isso o que a mídia divulgou.
No entanto, o Vaticano tinha uma visão muito diferente sobre a
reunião: o direito à vida e à liberdade religiosa foi, sim, uma parte
muito importante da conversa entre os dois líderes.
Junho: Um papa sincretista?
Um e-mail viral, que já foi reconhecido como falso, espalhou pela
internet o boato de que o papa Francisco é sincretista, ou seja, que ele
consideraria todas as religiões como igualmente verdadeiras. Quando ele
propôs uma oração multi-religiosa pela paz na Terra Santa, a ser feita
em pleno Vaticano na data de 8 de junho, os críticos se deram o direito
de interpretar que aquele viral estava sendo confirmado como verdadeiro.
Mas, como esclareceu o pe. Dwight Longenecker, o que o Vaticano tinha
organizado era um encontro de oração conjunta pela paz entre delegações
de Israel e da Palestina. A delegação israelense trazia tanto judeus
quanto muçulmanos, e a delegação palestina trazia tanto muçulmanos
quanto cristãos. Cada fé religiosa fez a sua prece, em momentos
separados, cada uma segundo a própria tradição. E nada disso aconteceu
dentro da Basílica de São Pedro, e sim nos Jardins do Vaticano.
A acusação de “sincretismo” reapareceria em novembro, quando o papa
Francisco orou na Mesquita Azul, em Istambul. A assessoria de imprensa
do Vaticano tranquilizou os críticos mais preocupados: Francisco rezou a
mesma prece que Bento XVI tinha rezado no mesmo lugar e da mesma forma.
Começo de outubro: a tempestade do sínodo da família
A mídia fez um imenso alarde quando o sínodo extraordinário sobre a
família divulgou um relatório preliminar. A frase fatídica foi uma
pergunta relacionada às pessoas que sentem atração pelo mesmo sexo:
“Será que as nossas comunidades são capazes de aceitar e valorizar a
orientação sexual delas [das pessoas homossexuais, ndr] sem comprometer a
doutrina católica sobre a família e o matrimônio?”.
“Valorizar a orientação sexual delas” foi a frase que ocasionou o
barulho. A Igreja nos ensina há muito tempo a valorizar as pessoas
homossexuais. Mas valorizar a orientação homossexual como tal? Isso não é
incoerente com os outros ensinamentos do catecismo sobre a
homossexualidade?
Não demorou muito para que o problema fosse explicado: o documento
recomendava “avaliar” a orientação homossexual, em vez de “valorizar”,
como tinha sido mal traduzido em vários idiomas.
O papa Francisco, um mês depois, orou por “todos os que procuram apoiar e
fortalecer a união do homem e da mulher no casamento como um bem
original, natural, fundamental e belo para as pessoas, para as
comunidades e para as sociedades inteiras”.
Final de outubro: Um papa darwinista?
Em 27 de outubro, o papa Francisco fez um discurso para a Academia de
Ciências e disse que “a evolução na natureza não se opõe à noção da
criação”; e acrescentou, com seu estilo típico, que Deus não é um
“mágico” que cria com uma “varinha de condão”, mas que Ele “criou os
seres e os deixou desenvolver-se de acordo com as leis internas que
tinha dado a cada um para que atingissem a sua plenitude”.
A mídia fez mais um dos seus alardes e deu a entender que o papa
tinha finalmente admitido a teoria da evolução, quando, na realidade, o
papa Pio XII já tinha dito a mesma coisa, meio século antes, na “Humani
Generis” (cf. nº 36). O catecismo também diz o mesmo em seu número 283.
Novembro: O “rebaixamento” do cardeal Burke
O anúncio tão esperado chegou em 8 de novembro: o cardeal
norte-americano Raymond Burke deixaria o seu posto no Vaticano como
prefeito da Assinatura Apostólica, a “Suprema Corte” da Santa Sé, para
assumir o cargo de patrono da Ordem de Malta. “O papa Francisco rebaixa o
conservador cardeal norte-americano”, publicou a agência Reuters.
A notícia preocupou parte dos católicos que apreciam a clareza com
que o cardeal Burke se pronuncia diante das questões polêmicas: eles
acharam que o papa Francisco estava dando uma espécie de “demonstração
de mão de ferro”.
Mas ninguém precisa se preocupar. Na verdade, Burke foi o cardeal que
durante mais tempo ocupou o cargo de prefeito da Assinatura Apostólica
nos últimos 37 anos. E, como vários observadores do Vaticano destacaram,
se o papa Francisco estivesse mesmo querendo se livrar das pessoas de
opinião firme, por que não afastava também o cardeal George Pell? E, se
ele quisesse silenciar o cardeal Burke, por que o colocava numa posição
que lhe dava ainda mais liberdade para se pronunciar com a sua habitual
franqueza?
Numa entrevista recente, o próprio papa Francisco esclareceu ainda
melhor o mal-entendido: ele disse que tomou a decisão de colocar Burke à
frente da Ordem de Malta com a aprovação do próprio cardeal e desde bem
antes do sínodo, mas o manteve em seu cargo anterior durante mais tempo
para que ele pudesse se envolver no sínodo da família.
Dezembro: os cachorros vão para o céu!
A notícia foi primeira página do “New York Times”: o papa Francisco
teria mudado a teologia conservadora que negava aos bichos um lugar no
paraíso! “Papa Francisco diz que os cães podem ir para o céu”, declarava
um artigo do popular jornal norte-americano “USA Today”, compartilhado
por milhares de pessoas no Facebook.
O caso é que os sites, jornais, revistas e emissoras de rádio e TV
tinham apenas deturpado uma frase dita em 1978 pelo papa Paulo VI…
A mídia, em resumo, tem projetado no papa Francisco os seus próprios
desejos, entendendo errado quase tudo o que ele diz de fato.
O melhor crítico desses “mal-entendidos papais”, no fim, é o próprio
papa Francisco. “Eu não gosto das interpretações ideológicas, de certa
‘mitologia sobre o papa Francisco’”, declarou ele numa entrevista
concedida um ano após o início do seu pontificado. “Representar o papa
como uma espécie de super-homem, um tipo de astro, me parece uma coisa
ofensiva. O papa é um homem que ri, que chora, que dorme serenamente e
que tem amigos, como todos. É uma pessoa normal”.
De fato, ele é.
Fonte: http://www.aleteia.org/pt/sociedade/artigo/2014-como-a-midia-mal-interpretou-o-papa-francisco-ao-longo-do-ano-5849512279015424?page=2